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terça-feira, 24 de abril de 2012

A história de Mora: anticandidatura movida a poesia


Anti-Geisel em 1973, Ulysses ajudou MDB a vencer Arena em 16 estados na eleição de 1974


Reunião da direção do MDB, com Ulysses Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho
Foto: Arquivo

Reunião da direção do MDB, com Ulysses Guimarães e Barbosa Lima SobrinhoARQUIVO
De fato, com a anticandidatura de meu marido à Presidência da República contra a do general Geisel, em 1973, a oposição passou a usar as armas da própria ditadura não só para enfrentá-la, como também para enfraquecê-la e, principalmente, derrotá-la.
Os frutos dessa campanha, que fez Ulysses percorrer o país todo denunciando a ditadura, foram colhidos já na supersafra do ano seguinte, quando o MDB derrotou a Arena em 16 estados brasileiros, nas eleições parlamentares de 1974.

Para matar a cobra com o próprio veneno

“A ditadura se assustou quando viu as fotos do general Euler entre as estrelas da ala radical do MDB”
Entusiasmado com o êxito dessa estratégia, ao repeti-la em 78, já com o nome apropriado de candidatura, o MDB foi mais ousado: buscou um nome dentro do próprio regime militar para tentar matar a cobra com o seu próprio veneno. A ditadura não chegou a tremer propriamente, mas se assustou quando viu as fotos do general Euler Bentes Monteiro entre as duas principais estrelas da chamada ala radical do MDB, os então senador Marcos Freire e então deputado Chico Pinto, na fachada de um prédio da Rua Figueiredo Magalhães, em Copacabana. Com a candidatura Bentes Monteiro, o MDB consolidou-se como aglutinador de todas as outras forças democráticas, militares e civis, que se rebelaram dentro do próprio regime militar, principalmente políticos (rebeldes da Arena) e empresários. Graças a 78, foi possível chegar em 84 e, na justificativa do próprio Tancredo Neves, “colocar o lenço no nariz e participar do Colégio Eleitoral”.
Então, realmente, tudo começou com a façanha da chamada “anticandidatura”, quando, pela primeira vez, todas as correntes do pensamento político brasileiro incrustadas no MDB se uniram em torno de uma mesma estratégia política, com dia e hora para começar e acabar. Explico: o partido lançaria um candidato para “disputar” uma “eleição” com resultado já definido: o general Ernesto Geisel, escolhido para suceder o presidente Médici, teria o seu nome inevitavelmente aprovado pelo “Colégio Eleitoral”, que se reuniria em janeiro de 74.
Por conta disso — e essa foi a condição imposta pela esquerda do MDB representada pelos “autênticos” —, o candidato, no caso o meu marido, renunciaria às vésperas da reunião do “Colégio Eleitoral” para denunciar ao mundo a farsa da “democracia” brasileira. O candidato a vice de meu marido foi o então presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI ), Barbosa Lima Sobrinho.
Ulysses não cumpriu o acordo, foi até o fim com a sua “anticandidatura”. Foi duramente criticado pelos “autênticos” que, mais tarde, calaram-se diante dos resultados eleitorais obtidos.
Mas a epopeia do meu marido não teria o sucesso que teve, sem a peça literária em que se transformou o discurso de lançamento da sua campanha, sob o título “Navegar é preciso”.
Talvez o discurso “Navegar é preciso” seja a síntese, a poesia, a musicalidade ou mesmo a própria obra-prima a que se refere Roberto Pompeu de Toledo, ao descrever essa caminhada.
A expressão “Navegar é preciso” tornou-se, por conta desse discurso, uma espécie de refrão contra a ditadura. Na política, sempre foi associada ao nome Ulysses Guimarães; na literatura, ao poeta Fernando Pessoa; e, na música, a Caetano Veloso.
Há até hoje uma enorme confusão e uma imensa discussão sobre a origem da expressão “Navegar é preciso”, grande parte dela provocada por esse famoso discurso do meu marido. Confusão, quando Ulysses, mesmo reconhecendo Fernando Pessoa como autor da frase, insere no seu contexto a figura camoniana do Velho do Restelo. E, aí, os que conhecem a frase só pela política às vezes a atribuem indevidamente a Camões.
A grande verdade é que nem de Fernando Pessoa ela é, embora deva-se a ele sua difusão, através da famosa “Palavras de pórtico”, na qual se refere às aventuras dos antigos navegadores e dos seus gritos de glória diante das grandes tempestades: “Navegar é preciso, viver não é preciso”.
O registro desses versos citados por Pessoa está em “Vidas Paralelas”, de Plutarco, que os atribui a Pompeu (106-48 a.C.) gritando aos seus marinheiros.
Como eu já disse aqui, Ulysses sempre fez questão de me mostrar seus discursos antes de torná-los públicos. E essa sua mania começou exatamente pelo que viria a se tornar o mais importante de todos eles, o “Navegar é preciso”. Por isso, eu nunca tive dúvidas de que o título fora mesmo buscado em Fernando Pessoa.
Só que eu não sabia que, apesar da sua grande cultura e fascínio pela literatura, sobretudo a relacionada com o mar, não foi propriamente Pessoa a fonte original da inspiração do meu marido.
E essa revelação devemos ao jornalista Luiz Gutemberg, autor de uma biografia romanceada de Ulysses, chamada “Moisés”. Eu, particularmente, devo a Gutemberg a informação contida no livro de que os versos originais são de Pompeu. Minha modesta cultura, confesso, não chegaria a tanto.
Escreveu Gutemberg sobre “Navegar é preciso”:
“Mas não foi Fernando Pessoa a fonte de Ulysses (...) Embora citando expressamente Pessoa, a colheita direta de Ulysses foi feita em Caetano Veloso, no fado ‘Argonautas’, que estava nas paradas de sucesso das emissoras de rádio. Sem confessá-lo, e por não ter conseguido localizar de memória as origens clássicas da citação, Ulysses apelou para a forma ritmada e o tom épico dos versos de Caetano.”
Que danado, esse meu marido! Será que o Caetano sabe disso?

A origem do “Navegar é preciso” de Caetano

“Como disse Chico Buarque, a gente sempre obedece a Bethânia e a Milton Nascimento”
Se não sabia, agora, seguramente já sabe. O apalermado só não é apalermado para fazer fofoca e já me trouxe o comentário do filho de Dona Canô:
“Se devemos agradecer a alguém por Ulysses ter tido contato tão intenso com a frase que Pessoa atribui aos argonautas (aquela turma liderada por Jasão, que partiu em busca do Velocino de Ouro), esse alguém é Maria Bethânia: ela foi quem me mostrou o texto de Pessoa em que a frase (assim como a atribuição) está inscrita, me pedindo que compusesse, para ela cantar, uma canção que tivesse a frase como refrão. Como disse Chico Buarque, a gente sempre obedece a Bethânia e a Milton Nascimento. Obedeci e compus o arremedo de fado (com um pedaço de frase melódica de ‘Mouraria’) que ficou tão famoso. Já li até gente que diz que roubei a frase, mas ela é domínio público há milênios. Honra-me muito que, na luta contra a ditadura, tenha sido a forma musicada por mim que inspirou Ulysses Guimarães no seu discurso. Aliás, ‘navegar é preciso’ combina bem com alguém cujo nome era Ulysses.”
“Sempre soube que Ulysses tinha citado a frase, inclusive como título de discurso, mas nunca pensei nessa frase como minha. Plutarco a atribui a Pompeu, mas parece que ela vinha de bem mais longe no tempo. A julgar pelo que diz Fernando Pessoa, ela era o emblema dos argonautas, Orfeu entre eles (que foi o que me deu a ideia do título)”.
Como se vê, não tem erro: há sempre uma mulher a inspirar, a impulsionar o homem.
Nas suas andanças com Ulysses, cantando “Pisa na fulô/ pisa na fulô/ que o Tancredo já ganhou”, João do Valle confessava: “Carcará” só é “Carcará” por causa da Bethânia.
Sabe-se, agora, também, que, sem Bethânia, talvez o discurso de Ulysses não tivesse tido o mesmo o impacto, a começar pelo título...


fonte:
http://oglobo.globo.com/pais/a-historia-de-mora-anticandidatura-movida-poesia-4707762

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