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terça-feira, 24 de abril de 2012

Capital feita de lágrimas e sorrisos

Historiador francês examina acontecimentos em torno do último dia do Rio de Janeiro como sede do governo federal





Um dia que começou como outro qualquer. Foi assim aquele 20 de abril de 1960, o último em que a Cidade Maravilhosa amanheceria como capital do país. Embora todos soubessem que o Rio de Janeiro estava passando seu posto de sede do governo federal para Brasília — a moderna cidade erguida no Planalto Central e inaugurada no dia seguinte pelo presidente Juscelino Kubitschek —, os cariocas não pareciam se dar conta das inúmeras mudanças que ainda estavam por vir. 

Naquela data, porém, como mostra o livro “As lágrimas do Rio — O último dia de uma capital”, que acaba de ser lançado pela editora Martins Fontes/Selo Martins (264 páginas, R$ 39), o povo foi tomando as ruas para se despedir de uma era e comemorar o nascimento de uma outra, como capital do novo estado da Guanabara. E quem conta essa passagem é o francês Laurent Vidal, especialista em História do Brasil, que se dedica há vários anos a pesquisar os acontecimentos do dia que mudou, sob vários aspectos, o perfil da cidade. Vidal é enfático ao afirmar que os cariocas só foram tomando pé da situação ao longo do 20 de abril. 

— Tanto é que as manifestações mais ruidosas foram acontecer no final do dia — lembra o historiador em entrevista ao GLOBO em Brasília, onde lançou seu livro na 1 Bienal Brasil do Livro e Leitura. 

Em 1988, quando ainda não falava português, Vidal, professor de História Contemporânea na Universidade de La Rochelle, escreveu uma tese de graduação sobre as capitais do Brasil. 

— Esta era uma dívida que eu ainda tinha com o Rio — conta ele, que construiu sua narrativa a partir de depoimentos de personagens, reportagens, crônicas de jornais e documentos da época. 
 JK chora em teatral despedida da cidade 

As lágrimas mais evidentes do Rio, segundo Vidal, estão simbolizadas no choro de JK para mostrar ao povo sua emoção na despedida da cidade, teatralização indispensável aos episódios da transferência. Já as mais íntimas vieram dos poetas, entre eles Carlos Drummond de Andrade, Homero Homem e Álvaro Armando, que fizeram questão de retratar os sentimentos ambíguos que a situação provocava. Vidal reproduz em seu livro, aliás, num capítulo especial, alguns desses poemas, como “Guanabara”, de Drummond, publicado no “Correio da Manhã” em 17 de abril de 1960, com versos como “Ficamos livres de Falcão,/ de Peixoto e da multidão/ de solertes paraquedistas/ a tocaiar novas conquistas./ Mas será que ficamos mesmo?/ Meu pensamento salta a esmo.../Tudo escuro. Sem almenara,/ nasce o Estado da Guanabara”. 

Entre as muitas histórias que conta no livro, Vidal lembra que JK, por iniciativa própria, não teria preparado despedidas nem os necessários ritos de passagem que seus assessores consideravam essenciais para a transferência da capital. Foram funcionários próximos, sobretudo o coronel Affonso Heliodoro, que acabaram responsáveis pelo processo de transição. A descrição da saída de JK do Palácio acabou sendo documentada por seus assessores. Ele trancou solenemente as portas do Palácio do Catete, verteu algumas lágrimas, entregou as chaves aos assessores e tomou providências para que o edifício fosse transformado em museu. Mais tarde, o presidente visionário teria dito que não fechava as portas do Palácio, mas virava a página da História. Antes de entrar no avião que o levou para a nova capital federal, virou-se para o público e bradou: “Viva o estado da Guanabara!” 

O livro, porém, não se prende apenas às 24 horas que antecederam a grande mudança. Até porque, diz Vidal, um dia não cabe em 24 horas. O processo de partida começou no dia 12 de abril, quando JK recebeu o título de cidadão benemérito do Rio e, no Palácio Pedro Ernesto, fez a sua primeira despedida. 

— No início, nada disso tinha sido previsto. Todos iam simplesmente embora. Só alguns conselheiros, e notadamente Heliodoro, tinham se dado conta da importância da transição. Heliodoro planejou, por exemplo, um conjunto de exposições e programas. E teria dito a JK: “Você não pode sair debaixo de vaias” — conta o autor. — Houve a teatralização necessária para evitar o trauma da saída, e a propaganda funcionou. Em vez de sair sob as temidas vaias, JK deixou a cidade com o povo cantando “Peixe vivo”. 

Mas os tais ritos de passagem e a aparente tranquilidade do povo naquele último dia da capital não foram suficientes para apagar o ressentimento que muitos cariocas carregam até hoje. Para o autor, vários mitos foram criados desde então no imaginário coletivo da cidade. E a transferência da capital teria sido usada como bode expiatório dos problemas do Rio e até mesmo por uma susposta “decadência” enfrentada pela cidade no passado. 

— Você não pode imaginar quantas histórias inventaram os cariocas para dizer que a decadência veio depois da transferência. Ela não foi o motivo econômico desta suposta decadência. O que foi chamado de decadência nada mais foi do que uma mudança no ritmo de desenvolvimento do Rio. A incorporação da Guanabara foi mais importante, na medida em que o Rio passava a ter de suportar uma região menos desenvolvida. A inflação também pesou — afirma Vidal. 

Para o autor, a decadência estaria muito mais relacionada a fatores subjetivos do que objetivos: 

— Uma cidade chamada maravilhosa não poderia ser “descapitalizada” para uma cidade quase do sertão, não é? E os poetas demonstraram isso ao falar em desânimo e traição. 

Embora essa discussão não esteja presente no livro, o historiador também discorda do argumento de um esvaziamento da cidade, com a perda da sua função administrativa. Com ou sem a transferência, diz, o Rio teria enfrentado todos os problemas por que passou nas últimas décadas. 

— Não aconteceu de uma hora para outra, levou décadas. As embaixadas demoraram a sair daqui. Até hoje ainda há muitos funcionários federais no Rio. Além disso, o Brasil da década de 1950 não tem nada a ver com o dos dias de hoje — observa. 

Para ele, o Rio nunca perdeu sua função essencial para o país. Foi construído a partir de uma ordem do rei de Portugal para ser cidade, o que era muito raro no Brasil, e já tinha um papel a cumprir dentro do território para organizar o país. Sem contar a importância que ganhou para a Coroa portuguesa com suas minas de ouro: 

— O Rio sempre teve um papel internacional e uma função destacada dentro do Brasil. Isso sempre foi deixado claro pela Coroa, depois pelo Império e pela República. 

A função cultural da cidade, lembra o autor, continou evidente desde o momento em que JK avisou que a Academia Brasileira de Letras, a Biblioteca Nacional, o Arquivo Nacional e outras instituições simbólicas permaneceriam na antiga capital.
 Autoestima da cidade cresce com eventos esportivos 

Se as origens da baixa estima do povo carioca nos últimos anos parecem controversas para Vidal, não resta dúvida de que o Rio vive o seu melhor momento dos últimos tempos, com a proximidade dos eventos esportivos (Copa do Mundo e Olimpíadas) e a explosão da indústria do petróleo. A autoestima, segundo ele, não para de crescer, e isso tem a ver com os desafios do século XXI. 

— O problema é saber o que fazer com todos os Rios de Janeiro. Quantos Rios existem hoje? O Rio da Barra não é o mesmo de Madureira — afirma Vidal. 

Especialista em assuntos do Rio, o sociólogo carioca Sergio Besserman admite que muitos, de fato, culparam a transferência da capital pelos problemas da cidade. 

— É claro que nos trouxe algum prejuízo. Mas houve exagero com relação à decadência. Tivemos períodos difíceis, mas sempre houve massa crítica de cidade competitiva — diz ele ao GLOBO. 

Besserman comemora a retomada da autoestima, mas alerta que ela ainda está em construção e deve se adequar aos novos tempos. 

— É uma construção social, política e cultural que tem sido bem-sucedida até agora. No entanto, é preciso começar a pensar estrategicamente além de 2016. Temos que imaginar o Rio de 2030, 2040, num mundo que vai sofrer transformações extraordinárias nas próximas duas décadas. Precisamos que o Rio continue maravilhoso e que também seja competitivo neste novo mundo.

fonte:http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/post.asp?cod_post=441308&ch=n

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